27 de fevereiro de 2006

MEU INCÔMODO AMBIENTAL


Este artigo foi escrito pelo premiado jornalista Lúcio Flávio Pinto.

O negrito é uma homenagem deste poster aos cientistas amazônidas, de diversas nacionalidades, que continuam a estudar e a publicar seus trabalhos sobre a região.

Amazônia: a utopia aqui e agora, já!

O recurso natural mais valioso da Amazônia é a sua floresta, que representa um terço de toda floresta tropical da Terra.

Essa é uma verdade que a ciência já confirmou. No entanto, a característica mais marcante do processo de ocupação da Amazônia é a destruição da sua floresta. Em apenas meio século, a cobertura vegetal nativa perdeu uma área de 700 mil quilômetros quadrados, o equivalente a quase três vezes a extensão de São Paulo, o mais rico Estado da Federação, com um terço do PIB brasileiro. Não há nada igual na história do Homo Sapiens. Qualquer que venha a ser o resultado final da incorporação econômica da maior fronteira de recursos naturais do planeta, essa marca já é definitiva: nunca houve tanta destruição florestal.

Quando, entre o final da década de 50 e o início dos anos 60 do século passado, a rodovia a Belém-Brasília uniu por terra, pela primeira vez, a Amazônia ao Brasil (que antes só se relacionavam por via marítima e pelo ar), a alteração da floresta original da região não chegara ainda a 1% da sua superfície. O homem se limitara às margens dos rios navegáveis e a uma ou outra incursão ao interior. Vivia do que os rios lhe forneciam e da coleta e extração de alguns bens de valor econômico, o mais importante dos quais seria a seiva da seringueira, transformada em borracha.

Na segunda metade do século XX a Amazônia permanecia basicamente a mesma que fascinara Euclides da Cunha 50 anos antes: a página do Gênesis que Deus se permitira não escrever, transferindo essa tarefa ao homem, elemento secundário na paisagem dominante. O homem, porém, não conseguia se tornar um criador genuíno dessa última página da criação: era um intruso.

Passado todo um século, essa intrusão só fez se agravar. Entre as décadas de 80 e 90 o homem destruiu 20 mil quilômetros quadrados de floresta a cada ano, em média. Em 1987 bateu o recorde mundial de desmatamento em todos os tempos: foram 80 mil km2 de floresta densa e mais 120 mil km2 de outros tipos de cobertura vegetal, segundo um ainda polêmico levantamento que o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) realizou na época.

O que a consciência regional, nacional e internacional se questionam é sobre a base de sustentação de uma atitude tão irracional como essa por tempo já tão prolongado (embora restrito ba amplitude da história humana). O agente do processo atua para exaurir o recurso mais valioso que está à sua disposição. Não se trata apenas de pôr a perder um bem de valor econômico, que pode gerar um excepcional volume de receita. Essa prática significa também ferir gravemente a capacidade de sobrevivência da própria Amazônia e comprometer o papel que ela desempenha no equilíbrio da Terra.

Sem sua maciça capa florestal, a região ficará exposta às intempéries, como a lixiviação e compactação do solo, e a transformações agressivas, como a dramática redução de seu exuberante volume de água (sobre cujo alcance teve-se um ensaio com a seca do ano passado), num ciclo de conseqüências para trás catastróficas de verdade. Por outro lado, deixará de haver a ação benéfica da vasta floresta pan-amazônica (de tamanho equivalente aos Estados Unidos e à Europa Ocidental), de absorver parte da poluição mundial.

As funções econômica e ambiental que a Amazônia pode desempenhar não são excludentes, ao contrário da visão distorcida que alguns setores da opinião pública tentam difundir. O "conservacionismo" já não pode ser apresentado como um entrave à produção de mercadorias. Determinações de proteção à Terra, acatadas em protocolos internacionais, criaram um mercado não-convencional tão vasto quanto aquele pelo qual circulam produtos tradicionais. A escala de transformação de determinado recurso natural depende do grau de informação detida por quem a ele tem acesso. O focinho de uma cascavel pode ser modelo para um míssil teleguiado pelo calor. Uma cascavel vale "x". O míssil, um milhão de "x". Quem sabe pouco mata a cascavel. Quem sabe muito, a estuda e transforma, sem destruí-la.

A diferença, portanto, está no saber. O saber não cai das árvores pronto, como no sistema extrativo, do homem coletor. O saber é uma construção. A construção do saber na Amazônia ainda é uma obra apenas iniciada. O acervo que já se tem, insuficiente mas ainda assim expressivo, colide com o "modelo" de ocupação da região. O que a ciência diz, o pioneiro não ouve. Por fazer ouvidos de mercador ou por desinformação, despreparo, ignora sugestões e recomendações. O cientista se tornou a carpideira nessa funesta cerimônia de destruição do bem mais nobre da Amazônia: vive a chorar e lamentar que não se tenha podido fazer isso e aquilo, com o qual todos sairiam ganhando, e se faça diferentemente. Em longo prazo, o que se faz é um crime de lesa-humanidade. Mas em curto prazo todos estaremos mortos, retruca o pioneiro, imaginando-se deus ex-machina do pragmatismo, de um conhecimento que cabe na cabeça de um fósforo.

Qual, então, a saída? Fazer mais ciência. Não ciência para ficar circunscrita ao local que a produz, nem aos livros dos seus autores, aos seus currículos Lattes. A ciência tem que ir para as frentes nas quais se faz necessária e nelas plantar sua boa semente (e se a semente não for boa, não é boa a ciência que se faz). Ou se promove uma revolução científica na Amazônia ou, amanhã, não haverá Amazônia - seja para a ciência como para os amazônidas e todos mais.

É preciso multiplicar os investimentos em ciência na região. Mas não só isso. É necessário formar pessoal qualificado na própria região, invertendo o fluxo do conhecimento. Boas verbas e boa estrutura física podem abrigar os centros do saber que se encontram fora da região, que são vitais para ela, sem provocar a migração de cérebros. Esses centros - de biotecnologia, engenharia genética, florestas, águas, commodities, etc - não ficariam confinados em campi centrais. Eles seriam deslocados para os lugares que constituem seu objeto de estudo ou seu laboratório de aplicação. Não apenas especializariam e atuariam na pós-graduação: também graduariam estudantes, para que sua formação ocorresse em contato com o alvo de seu trabalho. Mas esse processo não pode acontecer em condições precárias: o "último grito" em ciência e tecnologia seria dado na Amazônia, em equipamentos e em pessoal. Todo esse esforço sendo orientado pela construção e implantação do zoneamento ecológico-econômico, não como um jogo virtual, manobrado em computadores postados na retaguarda, mas na linha de frente da história.

Utopia? Certamente. Mas a Amazônia é um dos poucos lugares do mundo em que a utopia pode se tornar realidade em pouco tempo. Afinal, é onde a utopia está sendo destruída a cada verão, entre desmatamentos e queimadas.

Não é onde a última página do Gênesis está virando grafismo de mau gosto?

Portanto, mãos à obra. Já!


4 comentários:

Unknown disse...

Grande Lúcio, cientista, jornalista e pessoa.

Desambientado disse...

As utopias surgiam das cabeças de dois ou três ilumindaos. Graças a Deus, que hoje em dia não é assim.
Espero que não sejam utópicos aqueles que acreditam que a Amazónia sobrevive. Se não sobreviver, "viver" poderá passar a ser então uma utopia.

Jubal Cabral Filho disse...

Juca, nem preciso dizer da admiração que sinto pelo "olhar" e pelo transmitir desse olhar que o Lúcio nos passa. Como disse no email que lhe mandei: "Este é o artigo que gostaria de ter escrito"!

Jubal Cabral Filho disse...

Caro Félix, breve, muito breve vou publicar um artigo de meu irmão que mostra que as utopias ainda são palpáveis na Amazonia. Enquanto você se colocou à disposição para me enviar trabalhos sobre tecnologias e ciência, aqui alguns estudiosos "escondem" seus estudos. Com medo de que? Viver? Ou fazer viver a Amazônia?