Por Carmen Figueiredo em 31/08/2010
Fonte: Amazonia.org.br
Foi na virada de 1997 para 1998 que o mundo assistiu pela primeira vez a um incêndio florestal de grandes proporções na Amazônia. O fato ocorreu em Roraima e provou-se que em situações climáticas atípicas, um grande incêndio florestal era possível. Em 1998 o Parque do Araguaia também foi atingido por um incêndio florestal, como agora em 2010.
Naquela ocasião, o fenômeno El Niño ficou famoso e logo foi transformado no vilão da destruição. Atualmente, tanto El Niño como o La Niña são passíveis de previsão, uma vez que têm sua origem na alteração da temperatura das águas do Pacífico, onde existe um monitoramento efetivo e constante. Outras situações climáticas, porém, são complexas de prever. Dessa forma, optar por focar a prevenção em variáveis climáticas resulta em um atuação atrasada, lançando uma proibição de uso de fogo depois que o fogo já tomou grandes proporções e não é possível controlar, vide o corrido no Acre em 2005.
A questão é que anomalias climáticas, na verdade, definem apenas o grau de suscetibilidade maior ou menor que uma determinada região pode ter ao fogo. Mas não são as responsáveis pelos incêndios. São apenas mais uma das variáveis a serem consideradas em um mapa de risco.
Quando se tratar da questão do uso do fogo na Amazônia, vale registrar alguns fatos:
1. Até ocorrer o incêndio de Roraima a noção de que a floresta tropical amazônica era pouco propensa ao fogo prevalecia. Isso em razão de sua umidade natural. É muito comum se ouvir na região que a floresta é um aceiro natural, pois "o fogo sapeca por baixo, mas logo acaba". Em Roraima, registraram-se linhas de fogo se alastrando durante dias e semanas; uma nova realidade na qual florestas inteiras sucumbiram após a passagem do fogo.
2. A exploração ilegal de madeira também contribui para deixar a floresta mais vulnerável ao fogo, pois abre veios por onde a floresta perde umidade, criando assim um ambiente mais favorável ao seu avanço. O uso frequente do fogo amplia a cada ano essas novas avenidas dentro da floresta, aumentando gradativamente a degradação da mata e o risco de grandes incêndios.
3. O uso do fogo na Amazônia é conseqüência de outros processos, principalmente do desmatamento, sendo usado historicamente para limpeza da área derrubada para se fazer o plantio ou instalação de pastagem, limpeza de pastagem (dependendo do tipo de capim e características do solo, pois alguns tipos não rebrotam bem após o uso do fogo) e queima de lixo doméstico (seja na zona urbana ou rural).
Já se passaram doze anos desde o incêndio florestal de Roraima e o que mudou de lá para cá?
Fazendo uma retrospectiva, é possível verificar que as causas que levam ao uso do fogo continuam intocadas e a desprestigiada área ambiental governamental assim permanece. Atuar pensando que o problema do fogo se controla através de regulação ou repressão do setor ambiental é ingênuo.
Como multar quem queima seu lixo doméstico por não contar com coleta de lixo? Como multar aqueles que utilizam o fogo para limpar as áreas de roça e pastagens quando o governo jamais desenvolveu políticas publicas de apoio técnico, cientifico e de créditos subsidiados capazes de mudar essas práticas?
Para aqueles que utilizam o fogo no processo de produção ou queimam o lixo por necessidade, na verdade o uso do fogo é uma solução, e não um problema. Não é possível tratar todos os setores produtivos da Amazônia, desde o agricultor familiar até o pecuarista, como sendo vilões da destruição ambiental. Vilões, infelizmente existem em todos os setores e em todos os lugares do mundo. Mas também existem aqueles que optam por determinadas atitudes por várias razões, desde a ignorância até a falta de condições técnicas ou financeiras para fazer diferente.
Não tratar as questões de fundo que levam à utilização do fogo, como a regularização fundiária, desmatamento e coleta de lixo, por exemplo, concentrando os esforços em multas é uma ação covarde e irresponsável, porque isso jamais conduzirá a uma solução do problema. Mas se finge estar atuando.
Os desastres são certos, pois o setor ambiental governamental assume para si uma responsabilidade que não lhe cabe, de forma a liberar da obrigação de ações aqueles que setores que realmente podem atuar nas causas, como os setores de fomento à produção e comercialização, de créditos, de pesquisa e regularização fundiária.
Não se pode dizer, porém, que a área ambiental oficial é uma vítima da priorização do governo pelas áreas econômicas e de infra-estrutura.
A criação de unidades de conservação em gabinetes sem considerar a sua real situação de ocupação humana, de vocação produtiva e econômica e capacidade de gestão também contribui para o uso indiscriminado do fogo. É fato que para alguns setores produtivos na Amazônia o fogo ainda é uma ferramenta de trabalho. O fogo que foge ao controle pode significar muito prejuízo. Agora, se a pessoa vive em uma Unidade de Conservação de uma categoria que a obriga a se retirar, sua atitude certamente vai mudar, pois se a terra não mais lhe pertence, por que ter qualquer cuidado? A exclusão social é uma forma eficaz de incentivo à destruição dos recursos naturais.
Quando se contabilizam os números de focos de calor detectados via satélite (fonte: INPE) em Unidades de Conservação no estado do Pará, pode-se verificar que as Ucs que são palco de conflitos socioeconômicos e aguardam por regularização fundiária ou elaboração e implantação de seu plano de manejo têm elevado numero de focos de calor, como é o caso emblemático da Floresta Nacional do Jamanxim.
O Brasil não possui políticas publicam voltadas para atacar as causas das queimadas na Amazônia e o governo nunca sequer cogitou a possibilidade de priorizar a área ambiental quando se trata de orçamento, créditos ou um ministério articulador junto aos demais, na busca da tão falada "transversalidade", que acabou caindo no esquecimento, como mais uma boa idéia engolida pela realpolitik.
A questão é que o fogo permeia toda a cadeia de produção na Amazônia e acaba por afetar todas as áreas como é o caso da saúde, lotando os hospitais e postos de saúde com doenças respiratórias, ou da educação, impedindo crianças de ir à escola, da área de segurança com acidentes em estradas devido à fumaça, assim como o fechamento de aeroportos. E por aí vai.
Os prejuízos do fogo nunca foram restritos a área ambiental. Tratá-lo como uma mera questão de destruição da floresta é o caminho mais curto para nada resolver e comprometer todos os outros setores, inclusive o produtivo e econômico do país. Basta lembrar que, boa parte do solo na Amazônia se enfraquece quando do uso freqüente do fogo.
Ao abrir uma área de floresta e colocar o fogo pela primeira vez, a roça produz bem. No segundo ano, a produção decai muito, obrigando o produtor a abrir nova área de floresta já no terceiro ano e começar novamente o ciclo, pois os insumos para a recuperação do solo na Amazônia são caríssimos. As alternativas factíveis e em grande escala de recuperação de áreas degradadas ainda são um sonho. Assim segue o desmatamento, a grilagem, a desigualdade social, a violência, as alterações na balança comercial de exportações, o preço dos alimentos na mesa dos brasileiros e tudo mais.
Imagine-se, por exemplo, quantos problemas poderiam ser controlados simplesmente com políticas publicas e de créditos subsidiados voltados para a recuperação de áreas degradadas na Amazônia. Uma única ação como essa já teria um impacto enorme sobre todas as questões que envolvem o uso do fogo.
Por outro lado, após o incêndio de Roraima, houve uma mobilização internacional para contribuir financeiramente para tratar essa questão.
Na época, o setor ambiental oficial e não governamental rapidamente buscaram se organizar e o mundo voltou sua atenção para esse problema. Assim nasceu o PROARCO no âmbito do IBAMA. O programa foi financiado pelo Banco Mundial e tinha por objetivo estruturar o órgão ambiental, IBAMA, para desenvolver políticas publicas de ações, de prevenção e combate aos incêndios florestais na Amazônia.
No mesmo período viu-se a necessidade de trabalhar a questão da prevenção com segmentos produtivos específicos. Assim nasceu o Projeto Proteger, executado pelo Grupo de Trabalho Amazônicos - GTA, voltado para os agricultores familiares da Amazônia Legal e também financiado pelo Banco Mundial.
Em seguida foi à vez de Amigos da Terra, com apoio do Governo Italiano, desenvolver o projeto Fogo Emergência Crônica. Esse já com uma proposta pioneira de abordar o tema em suas causas e conseqüências de forma interdisciplinar e com todos os segmentos produtivos envolvidos direta e indiretamente com o uso do fogo em escala municipal, buscando apoiar ações realmente factíveis por parte de todos os parceiros.
Onde foram parar os suportes financeiros para continuidade e expansão desses programas? Como seus resultados foram transformados em políticas publicas? Aparentemente não foram.
Infelizmente o Brasil não tem um programa de prevenção aos incêndios florestais, afinal, é simplesmente um problema de ordem ambiental e não é todo ano que é tão grave. Quando o clima ajuda as estatísticas de focos de calor não viram notícia, e um fogo aqui e outro acolá já faz parte da paisagem e não causa mais espanto.
A questão é que a Amazônia já conta com um bom numero de áreas florestais vulneráveis aos incêndios florestais devido a incêndios anteriores, desmatamentos e exploração ilegal de madeira. Assim, cresce cada vez mais o risco de novos incêndios florestais e prejuízos. O governo não tem se mostrado preocupado em estruturar programas que possam estar atuando preventivamente na questão dos incêndios florestais, produzindo mapas de risco e orientando as ações, assim como não se tem qualquer indício de investimentos em políticas publicas e de créditos para se trabalhar as causas que levam ao uso do fogo.
Sinceramente, respostas dos candidatos a presidência da republica sobre esse tema interessariam mais que respostas sobre a economia que, entre acertos e erros, trilha seu caminho há décadas.
O futuro da Amazônia é um problema nosso, e a diversidade de sub-regiões nela contidas exige muito mais que uma política ambiental. Exige uma política atual e abrangente, sem ser generalista, para que possamos ter alguma esperança de redução do ritmo de degradação de nossas florestas e sobrevivência de seus habitantes e da produção que de lá vem.
Carmen Figueiredo é indigenista e consultora em gestão social de recursos naturais. Trabalha na Amazônia há 20 anos. Foi gerente de relações com a sociedade civil do PROARCO (1998), co-cordenadora do Projeto Proteger (1998/1999) e coordenadora do Projeto Fogo Emergência Crônica - Programa Marabá (2000/2001). Publicou várias cartilhas para o publico amazônico sobre o uso e controle do fogo e o primeiro livro infantil sobre o tema a partir da experiência das crianças de Roraima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário