29 de agosto de 2005

Qual é o sentido da atual crise política?

Alex Fiúza de Mello

Em decorrência dos últimos, notórios e graves acontecimentos que têm emoldurado e mobilizado o mais recente cenário político nacional, há que se perguntar qual é a extensão da crise. Trata-se de uma crise do PT? do Governo? do Parlamento? do sistema político-partidário em seu conjunto e de sua regulamentação? crise da democracia brasileira tout court (de suas instâncias institucionais mais representativas)?
O diagnóstico é fundamental para que se avalie, com o devido cuidado e rigor, a natureza, o alcance e as implicações, à vida social e à ordem estabelecida, do presente fenômeno de crise, para que, ao final do ciclo, purgados todos os elementos nele envolvidos, o retorno à "normalidade" não signifique retrocessos, perda de valores republicanos e descrença na possibilidade de construção (ainda) de um projeto de nação menos desigual, socialmente mais inclusivo, necessariamente contemporâneo e aberto às oportunidades do presente e aos desígnios do futuro.
Em maior ou menor medida, a atual crise política está, sim, associada a todas as dimensões institucionais acima enumeradas: é uma crise do PT, do Governo, do Parlamento, do sistema político-partidário e de sua virtual regulamentação, e que coloca em questão, portanto, desafiando-a - mais uma vez na história do Brasil -, a estabilidade institucional em seu conjunto e a conseqüente capacidade de governabilidade do país. O que se tem muito pouco refletido, contudo, é que a crise atual, detonada por eventos contingentes de superfície, representa também (e sobretudo), subterraneamente, a culminância putrefata, ora à tona emergente, de um processo político de longa duração, sedimentado em camadas no tempo, alimentado secularmente pelas elites oligárquicas brasileiras, e com raízes no coronelismo da República Velha, que sempre elegeu o privilégio, o mandonismo, a manipulação da Justiça, a privatização do público, a centralização do poder, o golpe, a impunidade como espécie de paradigma do exercício do Poder, preferindo, sempre, a exclusão social à "ameaça" de um povo bem educado; a dominação à hegemonia; a dependência tecnológica e o mimetismo à capacidade soberana de gerar conhecimento e de criar; a proteção ao talento; o privilégio à livre competição; o engodo e a opacidade à verdade e à transparência das motivações das ações; planos grupais de poder a projetos republicanos de nação. Uma cultura à qual, como se percebe, entranhada no inconsciente coletivo, secularmente realimentada pelos donos do poder, modernizadora do atraso, nem as esquerdas escaparam.
Trata-se, a crise atual, de uma crise da própria cultura política dominante no país, enraizada no jogo das mentalidades e expressa nas espertezas do quotidiano, cujo mérito maior é revelar, fratura exposta, a falência do populismo, da demagogia, das promessas salvacionistas, do coronelismo (hoje eletrônico) de partidos, dos interesses eleitoreiros de curto prazo, do engodo da "política virtual" alimentada pelo marketing e pela propaganda artificiosos, a pilhagem estrutural do erário público, a desfaçatez de colarinho branco e a conivência cega da (in) Justiça.
Marcos Valérios e PCs Farias sempre existiram nos bastidores e nas valas da política nacional. Empresários que hoje, aparentemente, se indignam, sempre corromperam governos em troca de faturamentos e privilégios. Políticos sempre foram reféns (e não representantes) de votos comprados a peso de ouro e falcatruas. Juízes, muitos, diligentes, pelos favores da indicação política ao cargo. A política, no Brasil, sempre foi mais a farsa do privado que a substância do público. Qual, então, a surpresa pelo quadro de crise atual?! Por que tanto estranhamento?! Afinal, ela é o nosso espelho, a reverberação de nossa história, a verdadeira face revelada das elites (antigas e novas) e de seus truques!
A crise, assim, é positiva, mesmo que à primeira vista ela pareça frustrar toda expectativa de esperança do povo brasileiro e os profundos e legítimos anseios por mudança e por justiça. É positiva porque desvela a realidade na sua crueza, solapa mitos, cancela ilusões; convoca todos à reflexão intransferível - e já tardia -, ensinando que não se pode delegar poder sem a devida supervisão de seu exercício. Ensina que não há salvação nacional por transferência de responsabilidades. Que o que o povo necessita, urgentemente, é de educação de qualidade, em todos os níveis e para todos, sem exceção, para que, mais consciente e senhor de si, então leitor crítico dos discursos e dos acontecimentos, não se deixe mais iludir por palavras ocas, por promessas falsas e pelo jogo virtual das maquiagens televisivas.
É duro, mas é preciso reconhecer que ainda somos uma republiqueta, corroída por ratos e morcegos, cuja fábrica social - a imensa desigualdade social, a péssima escola, a propaganda enganosa - tem gerado mais espertalhões e párias que patriotas e cidadãos.
Talvez somente a popularização dessa imensa vergonha, estampada nas telas e nas esquinas do país (e veiculada ao mundo), com o escárnio macunaímico de falta de identidade nacional, exatamente por efeito de repulsa, fará emergir de todos esses escombros uma verdadeira reforma política, não tanto das leis, mas das mentalidades. Um reforma da ética política. Pois, no nosso caso, terá de ser das cinzas de uma grande tragédia, ainda que de conteúdo moral - na ausência de outros referenciais na política nacional -, que se erguerá uma nova geração de políticos: mais consciente menos carreirista, menos oportunista, menos corrupta, mais sensível e comprometida com o bem público, que tenha vergonha de trair o povo, seus próprios filhos e netos, que ame mais o país que o próprio bolso, que tenha compromisso com o futuro. Então, tudo terá valido a pena.

Alex Fiúza é reitor da Universidade Federal do Pará

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