Por Lúcio Flávio Pinto em 24/08/2005
Fonte: Jornal Pessoal
Brasil e China começaram a cruzar seus caminhos no final do século XX. A primeira década do século XXI ainda não terminou e os chineses já são os maiores parceiros do Brasil na Ásia. Superaram a posição que o Japão conquistou nos anos 70 do século passado.
Nessa década, os japoneses foram colocados diante do maior desafio desde o final da Segunda Guerra Mundial: como sobreviver ao abalo do primeiro choque do petróleo? A resposta veio através do fechamento da indústria eletrointensiva, sobretudo do alumínio, e da transferência de fontes de suprimento de matérias primas, como o minério de ferro, para outros países.
O Brasil foi um dos mercados ultramarinos que tornou possível ao Japão se adaptar a uma energia mais cara e tão escassa em seu próprio território. O "milagre" brasileiro, baseado em poupança externa e financiamento estatal, esteve conectado ao milagre japonês, fundado numa empreitada comum entre o governo, a iniciativa privada e a sociedade, com base em poupança interna real. Como a história costuma ser irônica, o operador dessa façanha do lado brasileiro era um nissei, o ministro de Minas e Energia Shigeaki Ueki (hoje, um discreto milionário). Seu chefe (e "pai" adotivo) era um filho de alemães, o presidente-general Ernesto Geisel.
O capital japonês se espraiou pelo vasto território brasileiro, mas sua mais expressiva incursão foi na Amazônia. Especificamente, no seu coração metálico, a província mineral de Carajás, e na sua artéria de alumínio, o pólo de Barcarena, sempre no Pará. Nessa possessão, os japoneses deslocaram os americanos da secular posição de hegemonia que desfrutavam. De Carajás e de Barcarena passaram a sair 15% do suprimento de minério de ferro e de alumínio do Japão, a um preço melhor do que o interno e o dos fornecedores mais próximos à poderosa ilha asiática.
A China usou o mesmo caminho. Diante do seu tamanho, era de se esperar que logo estivesse à frente do Japão e, quem sabe, de qualquer outro parceiro internacional do Brasil. Como o Japão, a China tem sua estratégia de abordagem. Devia encontrar, no país forâneo (ou outland), uma estratégia de recepção. Ela existe, é claro. Mas não é completa, nem satisfatória. Existe por provocação, por inércia ou por interesse localizado. Como conseqüência da privatização doidivanas do governo Fernando Henrique Cardoso, a política pública se reduziu às políticas empresariais - ou, no máximo, setoriais, corporativas.
A razão da investida chinesa, como a japonesa, é a violenta demanda por matérias primas e a necessidade de deslocar processos produtivos eletrointensivos. Não surpreende que os locais de atendimento dessas necessidades se pareçam cada vez mais ao país demandador desses bens. À maneira do belo fado de Chico Buarque e Ruy Guerra, o Pará - locus preferencial - e a Amazônia (e o Brasil também, naturalmente) vão incorporando os problemas provocados pela atividade produtiva, que diminuem na potência de além-mar.
Hoje, um terço da área continental da China apresenta condições atmosféricas insatisfatórias, com concentrações de estados críticos em várias províncias. A poluição é causada, principalmente, pela queima de carvão mineral, ainda a principal fonte de energia do país (e que talvez ainda ocupe essa posição pelos próximos anos, mesmo quando entrar em funcionamento a maior hidrelétrica do mundo, a de Três Gargantas, 30% maior do que Itaipu).
Neste ano, 2.800 pessoas já morreram soterradas nas profundas minas de carvão. Outras centenas ainda morrerão até o final do ano. O número macabro se renova anualmente. Os chineses parecem admitir, diante de sua população de 1,2 bilhão de habitantes, ser esse um preço razoável a pagar para ter energia. O outro é despachar parte do problema para os países desejosos de vender para a China.
O Brasil está, afoito, na cabeça da fila. O IBGE constatou, no mês passado, que dois terços dos 5.560 municípios brasileiros enfrentam poluição, originada, sobretudo, da queima de massa vegetal. Dos 1.545 focos de fogo registrados num único dia (3 deste mês) pelo satélite meteorológico americano NOAA-12, nos 13 países da América do Sul, 73% se localizavam no Brasil. Mesmo os Estados que já não contam com cobertura florestal expressiva não estão se importando muito em perder o que resta das suas matas, se esse for o preço do que chamam de desenvolvimento. São Paulo é um desses Estados. As queimadas foram incrementadas na terra dos bandeirantes no primeiro semestre do ano. Em uma proporção menor de unidades federativas isso aconteceu. O Pará foi uma dessas maléficas exceções.
Os focos de fogo se expandiram em mais de 60% no Estado no primeiro semestre (de 4,5 mil para 7,2 mil), enquanto diminuíram nos demais Estados amazônicos e brasileiros (de 43,6 mil no ano passado para 32,3 mil focos agora). Em parte por iniciativas como a do fazendeiro de Ourilândia do Norte, que simplesmente tocou fogo em 9 mil hectares para formar pastos (ver Jornal Pessoal nº 350). Em parte, por acidentes. O mais grave deles ocorreu justamente em Carajás, a mina quase cativa de japoneses e chineses. Um acidente, é verdade, mas cada vez mais previsível. Repelido por alguns, desejado por outros.
A avaliação oficial do Corpo de Bombeiros é de que o primeiro incêndio deste ano na Floresta Nacional de Carajás, em Parauapebas, atingiu 100 hectares. O cálculo feito por Viviane Lassman, chefe da Flona, foi ao dobro: 200 hectares. O fogo foi considerado controlado na semana passada, quando recrudesceu, atingindo, até a edição deste jornal, mais 100 hectares. As brasas que resistiram ao trabalho de rescaldo desencadearam novo incêndio.
A operação de combate às chamas terá que continuar, cuidadosa e eficientemente, por mais tempo do que o previsto. Felizmente a destruição parece não ter atingido a floresta mais densa, como ocorreu em 2003, também em agosto, quando o incêndio consumiu 550 hectares da Flona de Carajás.
Com seus 325 mil hectares, essa floresta nacional ainda é um oásis verde diante da paisagem dominante ao redor. As fazendas e os assentamentos rurais colocaram abaixo aquele belo cenário, que dominava os vales do Itacaiúnas e do Parauapebas, quando o acesso à Serra só podia ser feito de avião, durante o verão, ou serpenteando pelos rios, nas cheias. Hoje, a região parece-se muito mais ao Planalto Central do que à Amazônia. Deixou de ser hiléia, virou sertão.
Um sertão no qual os pastos das fazendas se sucedem, como se a expansão da fronteira nacional homogeneizasse tudo, do Oiapoque ao Chuí. Mas para o observador atento aquelas ondulações contínuas, das quais Carajás é a mais destacada, advertem que logo estarão se agravando problemas que começam a surgir: evaporação de água superficial, aprofundamento da água subterrânea, compactação do solo, erosão, pragas, estiagens mais prolongadas, desequilíbrio hídrico, etc. É pouco provável que a natureza, em acomodação de milênios, entregará sem reação o seu patrimônio, dilapidado pelas engenhosas saúvas humanas.
O brasileiro trata a Amazônia com a mesma inconsciência que o leva a apostar todas as suas fichas no fausto atual das commodities, como se seus preços se tivessem nivelado pelo alto e pudessem ser controlados pelos que produzem esses bens, sem o risco de queda. O boom em que se encontram os vendedores é realmente de impressionar. Os recordes de produção de minério de ferro, ferro gusa, alumina, alumínio, bauxita e, daqui a pouco, placas de aço podem se combinar com grandes melhorias nos seus preços, mas esse é um processo dominado ainda pelos compradores.
Se eles estiverem dispostos a ceder mais do que os anéis, uma nova divisão de riqueza pode ocorrer. Mas se conseguirem manter os cordéis da comercialização, o futuro poderá reservar desagradáveis surpresas. Algumas das quais, como a deterioração ambiental e a tensão social, já se estabeleceram na região, como cavalos de Tróia.
A bela floresta de Carajás, como uma Helena metamorfoseada, não tem em sua defesa os meios proporcionais, nesta legenda adaptada, aos da ameaça. Por isso, sua beleza se manifesta como algo destinado inexoravelmente a desaparecer, como tudo mais que ainda é Amazônia neste insano projeto de savana tropical.
Nessa década, os japoneses foram colocados diante do maior desafio desde o final da Segunda Guerra Mundial: como sobreviver ao abalo do primeiro choque do petróleo? A resposta veio através do fechamento da indústria eletrointensiva, sobretudo do alumínio, e da transferência de fontes de suprimento de matérias primas, como o minério de ferro, para outros países.
O Brasil foi um dos mercados ultramarinos que tornou possível ao Japão se adaptar a uma energia mais cara e tão escassa em seu próprio território. O "milagre" brasileiro, baseado em poupança externa e financiamento estatal, esteve conectado ao milagre japonês, fundado numa empreitada comum entre o governo, a iniciativa privada e a sociedade, com base em poupança interna real. Como a história costuma ser irônica, o operador dessa façanha do lado brasileiro era um nissei, o ministro de Minas e Energia Shigeaki Ueki (hoje, um discreto milionário). Seu chefe (e "pai" adotivo) era um filho de alemães, o presidente-general Ernesto Geisel.
O capital japonês se espraiou pelo vasto território brasileiro, mas sua mais expressiva incursão foi na Amazônia. Especificamente, no seu coração metálico, a província mineral de Carajás, e na sua artéria de alumínio, o pólo de Barcarena, sempre no Pará. Nessa possessão, os japoneses deslocaram os americanos da secular posição de hegemonia que desfrutavam. De Carajás e de Barcarena passaram a sair 15% do suprimento de minério de ferro e de alumínio do Japão, a um preço melhor do que o interno e o dos fornecedores mais próximos à poderosa ilha asiática.
A China usou o mesmo caminho. Diante do seu tamanho, era de se esperar que logo estivesse à frente do Japão e, quem sabe, de qualquer outro parceiro internacional do Brasil. Como o Japão, a China tem sua estratégia de abordagem. Devia encontrar, no país forâneo (ou outland), uma estratégia de recepção. Ela existe, é claro. Mas não é completa, nem satisfatória. Existe por provocação, por inércia ou por interesse localizado. Como conseqüência da privatização doidivanas do governo Fernando Henrique Cardoso, a política pública se reduziu às políticas empresariais - ou, no máximo, setoriais, corporativas.
A razão da investida chinesa, como a japonesa, é a violenta demanda por matérias primas e a necessidade de deslocar processos produtivos eletrointensivos. Não surpreende que os locais de atendimento dessas necessidades se pareçam cada vez mais ao país demandador desses bens. À maneira do belo fado de Chico Buarque e Ruy Guerra, o Pará - locus preferencial - e a Amazônia (e o Brasil também, naturalmente) vão incorporando os problemas provocados pela atividade produtiva, que diminuem na potência de além-mar.
Hoje, um terço da área continental da China apresenta condições atmosféricas insatisfatórias, com concentrações de estados críticos em várias províncias. A poluição é causada, principalmente, pela queima de carvão mineral, ainda a principal fonte de energia do país (e que talvez ainda ocupe essa posição pelos próximos anos, mesmo quando entrar em funcionamento a maior hidrelétrica do mundo, a de Três Gargantas, 30% maior do que Itaipu).
Neste ano, 2.800 pessoas já morreram soterradas nas profundas minas de carvão. Outras centenas ainda morrerão até o final do ano. O número macabro se renova anualmente. Os chineses parecem admitir, diante de sua população de 1,2 bilhão de habitantes, ser esse um preço razoável a pagar para ter energia. O outro é despachar parte do problema para os países desejosos de vender para a China.
O Brasil está, afoito, na cabeça da fila. O IBGE constatou, no mês passado, que dois terços dos 5.560 municípios brasileiros enfrentam poluição, originada, sobretudo, da queima de massa vegetal. Dos 1.545 focos de fogo registrados num único dia (3 deste mês) pelo satélite meteorológico americano NOAA-12, nos 13 países da América do Sul, 73% se localizavam no Brasil. Mesmo os Estados que já não contam com cobertura florestal expressiva não estão se importando muito em perder o que resta das suas matas, se esse for o preço do que chamam de desenvolvimento. São Paulo é um desses Estados. As queimadas foram incrementadas na terra dos bandeirantes no primeiro semestre do ano. Em uma proporção menor de unidades federativas isso aconteceu. O Pará foi uma dessas maléficas exceções.
Os focos de fogo se expandiram em mais de 60% no Estado no primeiro semestre (de 4,5 mil para 7,2 mil), enquanto diminuíram nos demais Estados amazônicos e brasileiros (de 43,6 mil no ano passado para 32,3 mil focos agora). Em parte por iniciativas como a do fazendeiro de Ourilândia do Norte, que simplesmente tocou fogo em 9 mil hectares para formar pastos (ver Jornal Pessoal nº 350). Em parte, por acidentes. O mais grave deles ocorreu justamente em Carajás, a mina quase cativa de japoneses e chineses. Um acidente, é verdade, mas cada vez mais previsível. Repelido por alguns, desejado por outros.
A avaliação oficial do Corpo de Bombeiros é de que o primeiro incêndio deste ano na Floresta Nacional de Carajás, em Parauapebas, atingiu 100 hectares. O cálculo feito por Viviane Lassman, chefe da Flona, foi ao dobro: 200 hectares. O fogo foi considerado controlado na semana passada, quando recrudesceu, atingindo, até a edição deste jornal, mais 100 hectares. As brasas que resistiram ao trabalho de rescaldo desencadearam novo incêndio.
A operação de combate às chamas terá que continuar, cuidadosa e eficientemente, por mais tempo do que o previsto. Felizmente a destruição parece não ter atingido a floresta mais densa, como ocorreu em 2003, também em agosto, quando o incêndio consumiu 550 hectares da Flona de Carajás.
Com seus 325 mil hectares, essa floresta nacional ainda é um oásis verde diante da paisagem dominante ao redor. As fazendas e os assentamentos rurais colocaram abaixo aquele belo cenário, que dominava os vales do Itacaiúnas e do Parauapebas, quando o acesso à Serra só podia ser feito de avião, durante o verão, ou serpenteando pelos rios, nas cheias. Hoje, a região parece-se muito mais ao Planalto Central do que à Amazônia. Deixou de ser hiléia, virou sertão.
Um sertão no qual os pastos das fazendas se sucedem, como se a expansão da fronteira nacional homogeneizasse tudo, do Oiapoque ao Chuí. Mas para o observador atento aquelas ondulações contínuas, das quais Carajás é a mais destacada, advertem que logo estarão se agravando problemas que começam a surgir: evaporação de água superficial, aprofundamento da água subterrânea, compactação do solo, erosão, pragas, estiagens mais prolongadas, desequilíbrio hídrico, etc. É pouco provável que a natureza, em acomodação de milênios, entregará sem reação o seu patrimônio, dilapidado pelas engenhosas saúvas humanas.
O brasileiro trata a Amazônia com a mesma inconsciência que o leva a apostar todas as suas fichas no fausto atual das commodities, como se seus preços se tivessem nivelado pelo alto e pudessem ser controlados pelos que produzem esses bens, sem o risco de queda. O boom em que se encontram os vendedores é realmente de impressionar. Os recordes de produção de minério de ferro, ferro gusa, alumina, alumínio, bauxita e, daqui a pouco, placas de aço podem se combinar com grandes melhorias nos seus preços, mas esse é um processo dominado ainda pelos compradores.
Se eles estiverem dispostos a ceder mais do que os anéis, uma nova divisão de riqueza pode ocorrer. Mas se conseguirem manter os cordéis da comercialização, o futuro poderá reservar desagradáveis surpresas. Algumas das quais, como a deterioração ambiental e a tensão social, já se estabeleceram na região, como cavalos de Tróia.
A bela floresta de Carajás, como uma Helena metamorfoseada, não tem em sua defesa os meios proporcionais, nesta legenda adaptada, aos da ameaça. Por isso, sua beleza se manifesta como algo destinado inexoravelmente a desaparecer, como tudo mais que ainda é Amazônia neste insano projeto de savana tropical.
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