Do desmatamento ao uso sustentável, artigo de Antônio Márcio Buainaim e Bastiaan P. Reydon
O debate sobre o desmatamento da Amazônia e as intervenções do Estado tem sido marcado pelo voluntarismo e visões ideológicas que turvam uma realidade por si só demasiadamente complexa.
Não parece haver dúvida sobre a aceleração recente do desmatamento e sobre a necessidade de pelo menos reduzir o ritmo enquanto se criam alternativas de desenvolvimento para a região.
O atual processo de desmatamento da Amazônia não é novo e reproduz, em escala ampliada, a tradicional forma de expansão da fronteira agrícola: ocupação de terras virgens (privadas ou públicas), extração de parte da madeira de lei, desmatamento, criação bovina e agricultura. Inútil tentar criminalizar uma ou outra categoria: do processo participam grandes e pequenos produtores, ricos e pobres, pecuaristas, madeireiros, agricultores e mineradores apoiados pela ação e omissão do Estado e instituições em geral.
As atividades que acionam o desmatamento têm raízes locais e nacionais, são relevantes para a economia regional e cumprem múltiplos papéis, da sobrevivência física de milhares de pessoas à geração de renda e legitimação da ocupação de terras com potencial de valorização.
Trata-se, no momento, de um movimento que se auto-reproduz: a simples expectativa de que a fronteira continuará se expandindo é suficiente para estimular a ocupação de novas terras, que se valorizam à medida que vão sendo apropriadas privadamente e incorporadas à produção. Paradoxalmente, o desmatamento, que desvaloriza o patrimônio natural, é instrumento de apropriação privada de bem público e de valorização imediata do preço da terra: trata-se, portanto, de um bom negócio ocupar terras quase sem custo, desmatá-las e repassá-las adiante após alguns anos de “uso” para legitimar a posse. Há que se ter em conta que a especulação com terras é intrínseca às economias de mercado e é inversamente proporcional à capacidade do Estado de regular os mercados. Como no Brasil a pressão para a ocupação de terras é grande e a capacidade de regulação é mínima, prevalece o incentivo da especulação.
O desmatamento que ocorre prioritariamente em terras devolutas ou públicas só poderá ser coibido quando o Estado assumir, de fato, o papel de regulador da propriedade instituído pela Lei de Terras de 1850 e nunca cumprido. Esta regulação requer o cadastramento de todas as terras, indispensável para viabilizar o apossamento das terras devolutas e para controlar o uso das terras públicas e privadas. Sem cadastro continuará valendo a lei do faroeste, e quem tem a posse física da área tem o “direito” de usufruto e de venda.
Para as terras privadas se têm privilegiado as políticas de comando e controle, isto é, proibições e limitações que demandam fiscalização que o Estado não logra exercer. O Código Florestal de 1965 estabeleceu a obrigatoriedade de manter 50% da área das propriedades na Amazônia na forma de florestas naturais. Em 2001 essa reserva legal foi elevada para 80%, aumentando o custo privado de manter a floresta sem nenhum incentivo, a não ser a ameaça de punição. Como sem o cadastramento, estrutura e instrumentos legais adequados é impossível fiscalizar e fazer valer a legislação vigente, a nova regra só faz estimular o desmatamento para criar o fato consumado e a corrupção. O desafio é superar as políticas de comando e controle e encontrar mecanismos que gerem ganhos para o meio ambiente e para os proprietários (win-win), reduzindo o peso de proibições que não são passíveis de serem cumpridas.
A principal demanda dos proprietários de terras é o estabelecimento de regras claras e estáveis para reserva legal, sejam 50% ou 80%, associadas à possibilidade de flexibilizar a localização das reservas dentro de um território delimitado. Neste caso, um proprietário poderia adquirir uma área de reserva fora de sua propriedade, o que poderia criar valor econômico para a “produção” de florestas. Isso poderia ser utilizado como mecanismo de financiamento e preservação das reservas públicas (parques, Resex e outros): os proprietários poderiam “adquirir” lotes nas reservas e considerá-los como parte de sua reserva legal.
Desenvolvimento exige comando e controle críveis e, principalmente, incentivos. A Amazônia não pode ser tratada como santuário, e um certo grau de desmatamento é inevitável. O alarmante hoje não é o desmatamento, mas a fragilidade do Estado para lidar com o tema.
(O Estado de SP, 25/3/2008)
Antônio Márcio Buainain e Bastiaan Reydon, professores do Instituto de Economia da Unicamp, são pesquisadores do Núcleo de Economia Agrícola e do Meio Ambiente (NEA-Unicamp).
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