Em junho de 2013 foi enviado pela presidente da República ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 5.807/2013 que tratava do Novo Marco Regulatório da Mineração em 27 páginas e 59 artigos. Em 13 de novembro foi disponibilizado pela Comissão Especial criada para analisar o referido Projeto de Lei um texto preliminar para debate com 100 páginas e 130 artigos. Esta comissão, presidida pelo deputado Gabriel Guimarães (PT-MG) tendo por relator o deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), realizou dezenas de audiências públicas Brasil afora, visando colher informações sobre o referido projeto, daí a amplitude ocasionada. De um projeto que era ruim, com partes boas, tornou-se um projeto bom, com partes ruins, mudando o acento predominante na análise do tema.O projeto original tratava basicamente de três assuntos: regulação da atividade minerária, criação e transformação de órgãos públicos e aumento da carga fiscal e se autoenquadrava como uma norma que pretendia “dispor sobre a atividade minerária”, tendo sido transformado em um texto que desde o preâmbulo se autodeclara instituidor do “Código de Mineração Brasileiro”. De fato, a abrangência de matérias tratadas nesse texto substitutivo é amplíssimo e merece o nome, embora, a rigor, não seja o primeiro Código de Mineração Brasileiro como se pode vir a pensar. Outros já existiram, sendo o atual de 1967. O substitutivo é mais amplo que o projeto enviado ao Congresso e trata da questão da oneração de direitos minerários e da criação de títulos de créditos minerários, entre outros aspectos, e que se constituem em novidades positivas.
Tratemos hoje apenas da Compensação
Financeira pela Exploração Mineral (CFEM). Suas alíquotas devem ser
fixadas em lei ou em decreto? O caput do artigo 66 do substitutivo
pretende fixar estas alíquotas na lei e o Poder Executivo pretende que
as mesmas tenham apenas um valor-teto estabelecido na Lei, mas possam
variar de acordo com critérios de mercado. A proposta é manter um
sistema tal como ocorre com o IPI, em que as alíquotas podem ser
alteradas por atos infralegais, com função extrafiscal, de acordo com os
movimentos de mercado e a estratégia de política econômica do governo.
Neste caso devem-se distinguir dois aspectos. O primeiro é o teórico, no
qual as alíquotas poderem variar obedecido um teto de incidência é algo
muito melhor e permite a adoção de políticas anticíclicas por parte do
governo, compensando as usuais oscilações de mercado existentes no setor
minerário. Porém há também um segundo aspecto, da fidúcia, no qual se
estabelece que, para que haja esta liberdade de fixação de alíquotas, é
necessário haver confiança legítima no governo, e o setor minerário
acabou de passar por um apagão de dois anos, durante os quais nenhum
pedido de autorização de pesquisa foi sequer analisado, sem que tivesse
sido expedida norma nesse sentido. Os pedidos foram simplesmente
engavetados, sem nenhum despacho, por dois anos! Logo, a despeito da
solução teórica indicar um caminho, o setor empresarial teme o uso
político desse instrumento. Ou, como ouvi em seminário recente sobre o
tema, de forma jocosa: o Brasil não é a Suécia…
Outro aspecto a ser considerado diz
respeito ao aumento da carga fiscal, pois as reduções da base de cálculo
hoje existentes não constam do substitutivo (artigo 65, caput).
Atualmente se abate o valor do frete e do seguro, além dos tributos
incidentes na operação. Há lógica nesse abatimento, pois permite que as
minas localizadas em áreas com mais difícil logística tenham este custo
reduzido no valor da CFEM. Com o afastamento destes abatimentos haverá
aumento de carga fiscal o que é negativo para o setor.
Ademais, o substitutivo contém uma
imprecisão terminológica que poderá gerar muitos problemas de
interpretação, quando determina que a incidência passará a ser sobre a
receita bruta, abatidos apenas “os tributos efetivamente pagos sobre a
comercialização”. Quais são estes tributos e quando eles se tornam
“efetivamente pagos”? O texto em vigor menciona “tributos incidentes”, o
que é uma expressão de muito mais fácil determinação em um mecanismo de
tributos plurifásicos, tais como o ICMS, o PIS e a Cofins. Consoante o
texto proposta, o tributo será considerado pago ao final da cadeia
econômica? E se for exportado ao seu final, quando não há incidência
desses tributos, será mantido o abatimento? Será feita distinção entre
contribuinte “de fato” e “de direito”? Esses aspectos, dentre outros,
deveriam ser melhor detalhados, ou simplesmente ser mantida a fórmula
atual, já consagrada. No mesmo sentido constata-se forte aumento da
carga fiscal nas plantas industriais contínuas (artigo 66, parágrafo
1º), pois atualmente a incidência se dá quando ocorre o beneficiamento
do bem mineral, e passará a ser computada apenas no “momento anterior à
sua transformação industrial”, o que é mais oneroso.
Apenas para ilustrar, consideremos um
caso concreto: uma empresa extrai e beneficia minério no município A e o
remete através de transporte aquaviário por mais de 2 mil quilômetros
até a cidade B onde ocorrerá sua transformação industrial. Hoje este
frete é integralmente abatido do preço da CFEM, mas com as alterações
propostas o aumento de custo desta operação será potencializado, pois o
valor do frete não será abatido e o cômputo de custos da operação
abrangerá não apenas o beneficiamento (ponto A), mas sua transformação
industrial (ponto B).
Além disso, há um forte discurso
governamental a favor do incremento da verticalização na cadeia
econômica, visando reduzir a exportação de minério (quase) em bruto.
Todavia, o substitutivo é lacunoso nesse sentido, devendo ser prevista
redução de CFEM para as indústrias que não apenas extraíam o bem
mineral, mas também o transformem em cabos, vergalhões, perfis etc. O
projeto trata igualmente quem verticaliza a produção e quem não o faz.
Ou seja, falta tornar concreto o que consta do substitutivo em seu
artigo 2º, quando declara que “o poder público tem o dever de: VIII —
implementar políticas públicas para a criação e o desenvolvimento das
atividades de agregação de valor e de transformação dos recursos
minerais em produtos acabados e semiacabados”.
Os problemas não param por aí. O artigo
66, parágrafo 2º do substitutivo traz para a CFEM um instituto que é
extremamente contestado no direito tributário, que é o da pauta fiscal,
ao mencionar a hipótese da Agência Nacional de Mineração (ANM) criar um
“valor mínimo de referência” a ser utilizado como base de cálculo da
CFEM. A leitura desse dispositivo me faz lembrar a Súmula 431 do STJ,
que estabelece ser “ilegal a cobrança de ICMS com base no valor da
mercadoria submetido ao regime de pauta fiscal”. Ou seja, judicialização
a vista, caso este preceito venha a ser mantido no texto.
A mesma importação de modelos se
verifica no artigo 66, parágrafo 3º, quando se propõe aplicar à CFEM o
regime de preços de transferência, utilizado com muitos problemas em
matéria tributária. Esse assunto, inclusive, já foi objeto de veto da
presidente da República quando da sanção ao projeto de conversão da
Medida Provisória 581/2012, o que gera dúvidas quanto à sua tramitação
legislativa em face do artigo 67 da Constituição. Mais judicialização a
vista.
Não fossem suficientes os pontos acima
indicados, o substitutivo ainda acresce outra equiparação com criticado
instituto de direito tributário, que ocorre na transferência de bens
entre dois estabelecimentos de um mesmo contribuinte. Até as pedras
sabem que nesta hipótese não há incidência de ICMS, pois se trata de
mera transferência física de mercadorias. A Súmula 166 do STJ veda a
incidência desse tributo ao dizer que “não constitui fato gerador do
ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro
estabelecimento do mesmo contribuinte”. Pois bem, o artigo 66, parágrafo
4º do substitutivo quer aplicar esta regra para a cobrança da CFEM, o
que, além de ser contra o que estabelece o STJ, ainda é conflitante em
muitas hipóteses com o artigo 66, parágrafo 1º, do mesmo substitutivo,
que adota outra fórmula para tratar do caso.
Porém nem tudo é ruim neste âmbito das
incidências da CFEM. O substitutivo criou duas normas específicas
regulando a decadência em cinco anos (artigo 69) e a prescrição (artigo
70) também em cinco anos. Estas normas são bem vindas, pois a situação
atual é completamente caótica, considerando que o DNPM advogou durante
muito tempo que este prazo prescricional deveria ser computado pelo
Código Civil, em 20 anos… Ou seja, a adoção de regras específicas é
positiva e traz mais segurança ao setor. É certo, contudo, que o artigo
70, que trata de prescrição, poderia não importar os problemas
existentes no direito tributário e determinar de forma precisa que seu
cômputo começaria a partir da inscrição em dívida ativa, e não usar a
velha e confusa fórmula do Código Tributário Nacional que estabelece seu
início na “data em que o lançamento do débito se tornar definitivo”.
Por fim, encerrando a análise do âmbito
da incidência da CFEM, o artigo 71 traz boa inovação ao estabelecer o
princípio da anterioridade nessa matéria. Contudo, menciona que tal
preceito deve ser obedecido mesmo quando houver redução da incidência.
Ou seja, está correto o uso da anterioridade para aumentar a incidência,
mas seu uso é incongruente para reduzir a incidência.
No que tange ao rateio federativo da CFEM, o Substitutivo anda um pouco melhor, necessitando, contudo, de alguns ajustes.
Foi redividido o bolo arrecadado a fim
de incluir uma parcela de 10% para ser rateada entre os “municípios não
produtores”, que sejam impactados pela atividade minerária (artigo 68,
IV). A ideia é positiva e nitidamente se espelha nos royalties do
petróleo onde existe tal redistribuição. Há forte contestação quando o
pagamento desta parcela é efetuado na extração de petróleo marítimo,
pois o impacto é baixo ou inexistente, porém ela se mostra bastante
adequada quando se trata de exploração terrestre. Logo, entendo que o
substitutivo andou bem ao criar esta redivisão do montante arrecadado
com os municípios impactados. Será necessário analisar com muita cautela
este conceito de impacto, pois uma barcaça carregada de minério que
atravesse a hidrovia do Tietê ou que navegue pelo rio Amazonas não
impactará todos os municípios que se encontram no trajeto, mas essa é
uma questão que deverá ser analisada na regulamentação a ser elaborada.
Outra regra de federalismo fiscal que
poderia ser melhor ajustada é a que determina a vedação ao uso dos
recursos distribuídos no pagamento de dívidas e no pagamento de salários
(artigo 68, parágrafo 3º). Isto porque vedar é insuficiente. O mais
adequado seria vincular os recursos à criação e manutenção de
infraestrutura, bem como à capacitação de pessoal (não me refiro ao
pagamento de salários, por certo). Aqui o caráter de
transgeracionalidade do direito financeiro deve ser predominante, pois
se trata de receita oriunda de recursos naturais não renováveis, que
devem ser implementados com vistas não só à presente geração, mas também
com os olhos voltados às futuras gerações.
Por fim, são criados “conselhos de
representação da sociedade e do setor produtivo”, paritários, no âmbito
municipal e estadual, para fins de “acompanhamento e aplicação dos
recursos da CFEM” (artigo 68, parágrafo 6º), o que me parece bastante
salutar e encontra-se de acordo com a ideia de controle social do uso
dos recursos públicos. Temo apenas pela possível superposição de
atribuições com a Agência Nacional de Mineração (ANM) e o Conselho
Nacional de Política Mineral (CNPM), mas certamente isso será melhor
clarificado no regulamento.
As observações acima expostas foram
realizadas em um workshop ocorrido no dia 29 de novembro de 2013 sobre o
novo marco regulatório da mineração, na PUC-SP, organizado pela
professora e desembargadora federal Consuelo Yoshida, que coordena o
Centro de Estudos e Pesquisas Tecnológicas em Direito Minerário
Ambiental naquela universidade. Fiquei muito contente em participar
daquela atividade acadêmica junto com outros colegas, tais como Jorge
Alex Athias, da Universidade Federal do Pará – UFPA, José Angelo Remédio
Junior (PGESP), Bruno Kono (SEMMA/SFX), Gustavo Niskier (representante
da Vale) e Ricardo de Oliveira Moraes (Superintendente do DNPM/SP). E
dentre os mestrandos e doutorandos presentes registro Flávia Araújo, da
PUC-SP e Alexandre Silveira, da USP. Constatei a preocupação daquele
núcleo de pesquisas não só com a parte ambiental, mas também com
questões vinculadas ao direito financeiro aplicado à mineração. É
extremamente salutar e deve ser incrementada esta cooperação entre
Universidades de qualidade, tais como a PUC-SP, a USP e a UFPA nessas
áreas do conhecimento jurídico.
Agora é a hora da crítica construtiva,
visando aperfeiçoar o projeto ainda em debate no Congresso. Existe muito
mais a ser analisado no substitutivo sob a ótica financeira, o que me
obriga a voltar ao tema em outra oportunidade.
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