4 de junho de 2009

A Ilha

Aos poucos a terra foi desaparecendo até que só restou aquela tripa no meio do oceano. O povo que ali vivia se dividia entre 'de esquerda' e 'de direita'; entre sul e norte, ainda que fosse impossível identificar onde fosse seja o norte que o sul. As poucas bússolas giravam sem referência; o sol e as estrelas a cada dia nasciam em uma direção. Havia-se a impressão de que o último pedaço de terra deste mundo flutuava sobre um lento vórtice.


Eles a chamavam "Nossa Terra", pois tinha sido proibido referir-se ao lugar como uma ilha - era uma ilha - e todos eram orgulhosos da própria cultura. "A única sociedade que sobreviveu", diziam. De resto, discordavam de tudo. Nada era decidido, todos objetavam e denunciavam complôs. Até mesmo quando decidiram construir a nave discordaram e se acusaram mutuamente de plágio, espionagem e processaram-se em uma disputa pela autoria da ideia, que não chegou a conclusão alguma. Foi só porque todos se sentiam donos do projeto que o navio foi construído. [E porque - dizia-se à boca miúda - a ilha também iria desaparecer.]


Construíram um imenso estaleiro flutuante, capaz de suportar o navio que abrigaria toda a população. Áreas de lazer, atividades produtivas e, é claro, muito conforto. Para evitar novas acusações e espionagem, a estrutura foi dividida à metade, direita e esquerda, e um tapume escondia o que cada parte fazia. A esquerda caprichou na biblioteca, no salão de debates e nos diversos bares para onde convergiriam as muitas facções partidárias. A direita, no suntuoso e único restaurante, no salão de festas e no palanque eleitoral. O tempo foi passando e a barulheira era infernal, vinte e quatro horas por dia. Na data marcada a grande nave estava pronta. Coberta, mas pronta. A direita desejava fazer uma grande festa, mas a esquerda achou um desperdício e começou a derrubar o tapume. O povo foi subindo aos poucos, deixando aquela tira de terra que começava a alagar. Como previsto, o peso fez a estrutura ceder e o navio começou a flutuar.


Os líderes das duas partes se encontraram no meio do navio e tiraram as últimas peças que dividiam a nave. Finalmente todos no mesmo barco. A direita logo apresentou seus planos de navegação, mas a esquerda discordou:

-- Iremos na direção em que aponta a proa. Fácil!


A direita deu de ombros:
-- A proa aponta para a direita. Iremos pra lá.


-- Fomos nós que construímos a proa. - Retrucou a esquerda - Pilotamos nós o navio. Para a esquerda!


Só então se deram conta de terem construído duas proas. O navio não tinha popa nem motores ou leme.

-- Vocês tem os operários e a matéria-prima. Por que não fizeram a popa e os motores? - Questionou a direita.

-- Mas se as indústrias e os engenheiros estão nas mãos de vocês... - Acusou a esquerda.

-- Mas se as fábricas estão no sul, a parte pobre e esquerda da ilha...

-- Mas se são vocês que tem o projeto nas mãos... Blá, blá, blá

-- Acontece... Blá, blá...

-- Blá...


A terra começava a desaparecer, a nave flutuava à deriva e a discussão ameaçava não ter fim. As vozes iam desaparecendo na imensidão daquele oceano único, azul-escuro como a noite que começava a cair. No horizonte grossas nuvens se formavam. E eles rumavam para a tempestade.

-- Blá, blablá, blá!

-- Blá, blá...

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